Síndrome de Estocolmo doméstica: as relações violentas e a dificuldade de denunciar

Entenda porque muitas mulheres, jovens e crianças não denunciam seu agressor. Isso nos faz entender porque muitas demoram para revelar (e às vezes nem revelam) que vêm sendo abusadas há anos.

Stael Ferreira Pedrosa

Recentemente, o caso de uma menina de 10 anos que sofreu abuso por um familiar de quem engravidou, e o aborto indicado para seu caso, dividiu opiniões e mostrou uma face perversa de parte da sociedade brasileira. Houve quem indagasse que a menina, se era abusada desde os 6 anos, porque não contou a ninguém? Ainda disse que a culpa era dos pais. Isso demonstra um total desconhecimento das situações de milhões de meninas e mulheres abusadas em todo o mundo.

A menina em questão não tem a presença da mãe, já falecida e o pai é presidiário. Ela vivia com a avó, na mesma casa que seu abusador. Além disso, é de amplo conhecimento (que parece não ter alcançado a pessoa já citada) que o abusador garante o silêncio da vítima, seja através de ameaças ou outros meios sórdidos, como por exemplo, promessas de ganho e fazer a vítima sentir que não há escapatória ou que ninguém a salvará. Esse tipo de indução cria na vítima a chamada Síndrome de Estocolmo doméstica.

Origem da Síndrome de Estocolmo

Em 23 de agosto de 1973, houve na cidade de Estocolmo, Suécia, um assalto a banco com reféns. Tanto os assaltantes quanto os reféns permaneceram por 6 dias presos no banco, enquanto a polícia tentava alguma negociação com os bandidos e salvar os reféns. O que não se poderia imaginar em tal situação aconteceu: reféns e sequestradores estabeleceram laços afetivos. De acordo com reportagem da Exame, a porta-voz dos reféns, Kristim Enmark, claramente tomou partido dos sequestradores diante da polícia. Os reféns se negaram a sair antes de seus sequestradores, com medo de que eles fossem castigados, e se despediram com abraços”.

De acordo com Nils Berejot, que cunhou a expressão “Síndrome de Estocolmo”, a característica principal dessa doença psicológica aleatória é que a pessoa abusada se torna aliada ou desenvolve sentimentos por seu agressor.

A síndrome de Estocolmo doméstica

A síndrome, em sua versão doméstica, acontece nos casos de abuso infantil, estupro e violência no lar. A vítima da violência psicológica ou física acredita não poder escapar daquela situação, por isso tende a criar um mecanismo de defesa através da observação do agressor em busca de algum gesto de atenção que geralmente é interpretado pela vítima como sinal de gentileza, carinho ou empatia. O que, claro, está apenas na mente da vítima em situação crítica.

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A expressão, ainda bastante nova no Brasil, já é utilizada em outros países da América Latina. A associação entre Síndrome de Estocolmo e violência doméstica vem da observação de especialistas, policiais e assistentes sociais sobre a situações das vítimas da violência em casa, que não contam, não procuram ajuda e nem dão queixa à polícia, e quando o fazem, voltam atrás e retiram a queixa.

É fácil para pessoas que não vivem tal situação fazer comentários do tipo: “ah, se não contou é porque está gostando”, ou “se ela continua com o marido é porque gosta de apanhar”.

Outro fator, é a relação entre agressor e vítima, geralmente envolve poder, ou seja, ele é maior, mais forte, ou o responsável pelos meios de sobrevivência da vítima, criando nesta uma distorção cognitiva: “se eu me aliar ao agressor, ele pode me poupar” ou “não tenho saída a não ser aceitar esta situação, pois ninguém vem me salvar”.

Geralmente o medo é o grande impulsor deste comportamento, junto com a falta de esperança, a vítima passa a incorporar a violência como modo de vida. E, na maioria dos casos, há uma profunda falta de consciência da gravidade da situação.

Mudança de foco

O que aconteceu no caso da menina de 10 anos é que se passou a julgar a vítima. Pessoas inescrupulosas deixaram “vazar” dados da menina e do hospital onde ela faria o procedimento de interrupção da gravidez. Chegaram a dizer que “ela gostava”, ou que “não era nenhuma santa”. Na porta do hospital, manifestantes e “religiosos” gritaram “assassina”, banalizando a agressão do tio e juntando mais agressão à criança de apenas 10 anos, abusada desde os 6 e ameaçada por seu agressor. Nenhuma criança deveria passar por tudo isso.

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O foco deveria ser na situação da menina, abusada, violentada, agredida e tendo que arriscar a própria vida para ter um filho de seu agressor.

Agosto lilás

Este é o nome da campanha criada em alusão ao mês de aniversário da Lei Maria da Penha, cujo intuito é conscientizar, incentivar a denúncia e defender os direitos da mulher em situação de violência.

Sabe-se que o Brasil ocupa hoje o 5º lugar no mundo no ranking de violência doméstica, e de acordo com o site Observatório, 68% das crianças brasileiras com até 14 anos já sofreram violência corporal em casa. Só em 2017, foram 84.049 denúncias do tipo. No ano anterior, haviam sido 76.171.

Os principais tipos de violência denunciadas são: negligência (61.416), violência psicológica (39.561) e violência física (33.105).

É necessário desconstruir ideias errôneas

A violência contra crianças e mulheres tem raízes comuns em afirmações do tipo: “minha mãe/pai me batia e hoje sou um cidadão de bem”, ou “bato nos meus filhos para a polícia não bater mais tarde”, “bato com amor, a polícia bate com rigor” e ainda “bato porque quero o seu bem”. Tais afirmações passam a mensagem à criança que quem tem poder (pai, mãe, marido, polícia) deve bater pelo bem da vítima, para que ela possa “agir corretamente”, “se emendar”, “fazer o que eu mando” etc., perpetuando o ciclo da violência doméstica. Desconstruir essas crenças deve ser o objetivo de uma sociedade mais justa e solidária.

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Além disso, estudos afirmam que a criança que sofre violência doméstica tende a ser mais violenta, mais propensa ao uso de drogas e à criminalidade na adolescência, que as crianças que não sofreram castigos físicos ou psicológicos.

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Stael Ferreira Pedrosa

Stael Ferreira Pedrosa é pedagoga, escritora free-lancer, tradutora, desenhista e artesã, ama literatura clássica brasileira e filmes de ficção científica. É mãe de dois filhos que ela considera serem a sua vida.